Livros de Culinária Palestina
Separar comida de política é impossível: não tem nada mais político do que aquilo que cozinhamos, comemos e compartilhamos em nossas mesas.






Para este primeiro post da fatia Li com gosto! trago seis livros de culinária palestina. Não sou a primeira a dizer isso, é claro, mas realmente acredito que separar comida de política é impossível. Comer é política pura: tem a ver com terra, pertencimento, escassez, abundância, justiça. Toda vez que cozinho alguma coisa ou escrevo sobre comida, não consigo ignorar o que está acontecendo no mundo. Especialmente agora, enquanto assistimos (de novo, ainda, sempre) à violência, à destruição e ao sofrimento do povo palestino.
Como muita gente, me sinto pequena e impotente diante disso tudo. Mas também acredito que pequenos gestos são formas de resistência. E hoje, o meu pequeno gesto possível é esse: compartilhar livros que contam histórias da Palestina através da comida. Porque quando conhecemos as histórias dos outros, começamos a enxergar humanidade onde antes nos ensinaram a ver só conflito. Como diz aquela frase que eu adoro: "um inimigo é apenas uma pessoa cuja história ainda não ouvimos."
Aliás, é importante perceber que a destruição de um povo começa também por aí: pela comida, pelo sumiço dos ingredientes, pela perda das receitas passadas de geração em geração, pela substituição da identidade por algo genérico e vendável. Os autores desses livros tem somente um inimigo comum: o esquecimento. Escreveram pra contar para o mundo que a Palestina existe e cozinha, canta, planta, ama.
A culinária palestina é uma ponte. Um elo entre o que foi e o que ainda se sonha viver. Um prato de comida pode carregar séculos de memórias, saberes, exílios, festas, perdas e heranças. Os livros abaixo falam de resistência, saudade, amor e pertencimento. Se você puder, compre um - ou mais - deles. Cozinhe uma receita. Compartilhe uma história. E lembre-se: comer é também resistir.
Uma observação importante: Não encontrei livros de culinária palestina em português e isso é absurdo, mas previsível. Todos os livros recomendados aqui estão em inglês embora sejam vendidos também no Brasil. Talvez, com o aumento da procura, as editoras brasileiras negociem uma tradução - mas sabemos quantas camadas de interesse estão por trás da publicação de livros assim, né? Também não dá pra separar o mercado editorial da política, infelizmente. Porém, encontrei esse ebook gratuito da Editora Memo e essa notícia linda. Já é alguma coisa. 🩷
Zaitoun: Recipes from the Palestinian Kitchen, de Yasmin Khan
Provavelmente o mais famoso dos livros do tipo, ao menos aqui na Itália. "Zaitoun" significa "azeitona", um dos símbolos da terra palestina e da força de quem resiste. Yasmin, britânica e ativista de direitos humanos, percorre a Palestina conversando com famílias, fotografando com artistas locais e coletando receitas autênticas. O livro divide a gastronomia palestina em três grandes regiões: Galileia, Cisjordânia e Gaza. Fala de ingredientes, contextos e memórias. Tem receitas lindas, muitas saladas coloridas, sopas, pratos principais e sobremesas (como um bolo de romã incrível). No fim, traz menus prontos para datas especiais, além de índices por restrições alimentares. É um livro afetivo e profundamente político, feito pelo olhar de uma pessoa que não é palestina mas se importa profundamente com quem é.
Palestine on a Plate: Memories from my mother's kitchen, de Joudie Kalla
Joudie, descendente de palestinos, conta que só entendeu verdadeiramente a culinária da sua família quando aprendeu árabe. Trabalhou como chef em Londres por 16 anos e teve seu próprio restaurante. Suas receitas vêm da mãe, que cozinhava cinco pratos por noite (!). O livro tem desde pratos tradicionais simplificados até sobremesas que fiquei doida pra testar, como brownie de tahine e donuts de limão com rosas. Foca bastante na redução do tempo de preparo dos pratos, pensando na vida moderna e corrida, mas de uma forma que respeita as origens e a tradição. Apresenta as ervas e condimentos que são a base do sabor da região, ensina bebidas típicas e tem fotos incríveis. É uma homenagem às mulheres palestinas e ao poder da cozinha como memória viva.
“Sometimes a homeland becomes a tale. We love the story because it is about our homeland and we love our homeland even more because of the story.”
“Às vezes, uma terra natal se torna uma história. Amamos a história porque ela é sobre a nossa terra natal, e amamos nossa terra natal ainda mais por causa da história.”
Refaat Alareer, Gaza Writes Back



The Gaza Kitchen: A Palestinian Culinary Journey por Laila El-Haddad e Maggie Schmitt
Talvez o mais necessário e urgente entre todos os livros dessa lista. Vai muito além da culinária: documenta a vida em Gaza, suas limitações e reinvenções. Ensina pratos ricos em sabor, mesmo diante da escassez e da “economia da incerteza” - como o uso estratégico da pimenta (uma planta que cresce rápido e com pouca irrigação) para garantir nutrientes a baixo custo onde faltam frutas e verduras. Esse livro me tocou profundamente. As autoras entrevistaram dezenas de mulheres e registraram não só receitas, mas formas de cozinhar quando se tem apenas um forno improvisado (tanajir kahraba, na foto acima, um tipo de forno feito com panelas e uma resistência elétrica, já que a tubulação de gás em Gaza foi destruída por bombas) ou uma única refeição por dia. O livro é cheio de histórias e fotos e no fim ainda traz um guia prático com links para quem quer ajudar Gaza de forma concreta divididos em informar, comprar, visitar, doar, educar, defender etc.
“This book becomes more essential with every passing day. Not just a superb cookbook, a collection of vital recipes from a delicious yet often overlooked cuisine, but an argument for understanding. A classic of world food.”
“Este livro se torna mais essencial a cada dia. Não é apenas um livro de receitas incrível, uma coleção de receitas essenciais de uma culinária deliciosa, porém frequentemente esquecida, mas um argumento para a compreensão. Um clássico da culinária mundial.”
- ANTHONY BOURDAIN
The Palestinian Table, de Reem Kassis
A autora é palestina, filha de mãe muçulmana e pai cristão, ambos palestinos. Cresceu em Jerusalém, entre três grandes religiões, mas teve um destino diferente do da maioria das mulheres ali: seus pais queriam que ela focasse em sua educação. Seu medo sempre foi “terminar na cozinha” como todas as outras. Mas, depois de estudar nos Estados Unidos e fazer carreira, viu que o que havia de mais precioso estava em sua origem. Hoje, seu trabalho foca na intersecção da cultura, e em particular da comida, com a história e a política. No livro existe uma crítica forte ao modo como nós, ocidentais, simplesmente chamamos todas as comidas típicas do Oriente Médio de “comida árabe” e achamos que é só jogar um pouco de za’atar ou algumas sementes de romã por cima de algo pra poder chamar assim (aliás, é por isso você não vai encontrar livros do chef Yotam Ottolenghi nessa lista, como o famoso Falastin e Jerusalem). Ela tem razão: isso é uma forma de apagamento ou no mínimo de uniformização cultural, desrespeitando as diferenças de cada lugar. O livro é meticuloso, com receitas vindas da mãe e contextualizadas com muita clareza. Cada preparo é explicado do zero, com cuidado nos detalhes e no sabor final desejado.
Craving Palestine por Lama Bazzari, Farrah Abuasad e Fadi Kattan
É um livro coletivo curado pelos fundadores da ONG Anera contendo mais de 100 receitas escritas por pessoas palestinas espalhadas pelo mundo — chefs, artistas, atores, empreendedores. Cada receita começa com a foto do autor e uma pequena biografia. É um mosaico vibrante da diáspora palestina, com sabores que contam sobre raízes e saudade. O valor das vendas é revertido para ajudar os refugiados, então além de um livro ótimo, é uma ação concreta. Está disponível em versão física ou digital no site do projeto. É muito completo, variado como deve ser e cheio de fotos lindas. Tenho o ebook mas pretendo comprar a versão impressa assim que possível.
Dine in Palestine de Heifa Odeh
Heifa é uma chef e food blogger vencedora de vários prêmios como o Saveur Magazine em 2019 pelo melhor blog de cultura alimentar. É jovem, engajada e muito orgulhosa de suas origens palestinas. Ela ajuda na divulgação cultural através da comida, dividindo receitas online e lutando contra o apagamento. Nesse livro, lançado em 2022, a autora compartilha memórias pessoais e familiares através de 60 receitas emblemáticas. O livro tem muitas opções de sobremesas, o que eu gosto bastante. Tem uma abordagem bem atual, com preparos modernos e práticos, além de aplicar ingredientes tipicamente palestinos em preparações ocidentais. Tem alma de blog, com fotos lindas e textos sinceros.
Por fim…
Meu conselho, inclusive pra mim mesma, tem sido tentar entender mais das origens de um conflito antes de assumir um lado. Eu não tinha noção de muita coisa antes de me interessar pelo assunto, das pesquisas que fiz e dos livros que li pra fazer esse post. Temos muitas preocupações e tendemos a pensar que coisas do outro lado do mundo não são “problema nosso”, mas isso não é verdade. Felizmente hoje a informação é muito acessível e a IA pode explicar conceitos difíceis de um jeito fácil, é só pedir. Então informe-se, pesquise, conheça e faça o que estiver ao seu alcance para diminuir injustiças. •
Adorei as dicas! Compartilhar tradições culinárias é manter s cultura viva ❤️
tua postagem apareceu pra mim em um momento em que eu estava pensando muito no genocídio do povo palestino e em como há tanta coisa que é consumida pela guerra, principalmente as refeições compartilhadas nas mesas das famílias palestinas. essa tua pesquisa foi um feliz achado em um momento de grande angústia. espero genuinamente que as editoras brasileiras vejam a preciosidade desses livros. como você bem coloca, falar sobre comida é também a resistência, se alimentar é político, e divulgar essas obras é mostrar que a palestina ainda resiste. falar da deles é também falar de nós. muito obrigada pela postagem ❤️